Garotas Mágicas, Punk Rock e Haute Couture
- clara queirós
- 24 de out. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de nov. de 2024
De Sailor Moon a NANA, de Thierry Mugler a Vivienne Westwood; entenda como a moda influenciou os mangás e vice-versa

Sailor Plutão veste o icônico vestido de correntes da Chanel em ilustração de1992 por Naoko Takeuchi.
Ao contar uma história, muitas vezes a moda pode ser julgada pelos autores da obra como um dos menos relevantes aspectos para o enredo. No entanto, a mesma pode ser um sutil ainda que poderoso artifício para informar ao espectador sobre características de um personagem sem perder tempo precisando colocar tais aspectos em palavras. O momento histórico em que se passa a obra, tal como a situação econômica, classe social e até mesmo aspectos subjetivos como o estado psicológico de um personagem são apenas alguns dos elementos que podem ser expressos por suas vestimentas. Enquanto que a indústria cinematográfica notavelmente tenha colocado cada vez mais esforços quando se trata dos figurinos, uma outra mídia vem trabalhando tais conceitos com maestria há décadas: os mangás.
Enquanto que o termo e o formato dos “mangás” possam ser traçados até meados do século XIX, a era de ouro desse mercado ocorreu durante a década de 90, quando aqueles que eram vistos como meros gibis e passaram a se tornar narrativas complexas que se estendiam por diversos volumes, tornando-se um fenômeno cultural de importância inestimável para os japoneses. Em 2020, a Associação de Editores de Revistas e Livros do Japão (AJPEA) estimou que a indústria dos mangás tenha colaborado com uma receita equivalente a 8 bilhões de dólares ao PIB japonês. A maior influência, no entanto, se dá ao passo em que estabelece uma das maiores forças do Japão no contexto da economia e cultura, internacional e global: seu soft power e criação de tendências.
No início dos anos 90, enquanto trabalhava em outro projeto, a artista e quadrinista japonesa Naoko Takeuchi sonhava em unir suas paixões por moda, astrologia e garotas mágicas. Incentivada por seu editor - que também sugeriu que ela vestisse o grupo de protagonistas em roupas inspiradas em uniformes de marinheiros - Takeuchi deu início ao projeto e, em 20 de agosto de 1991, a primeira edição do mangá “Codename: Sailor V” foi publicada. Devido ao sucesso de vendas, não demorou até que um estúdio de animação oferecesse uma oportunidade para adaptar o conteúdo. Após aceitar, a autora fez algumas alterações ao enredo, e a história de Sailor Moon, como é conhecida nos dias de hoje, nasceu e passou a ser publicada em dezembro de 1991. Hoje, a franquia já soma mais de 2.5 bilhões de dólares em vendas ao redor de todo o mundo
O sucesso de Sailor Moon se deu, em grande parte, por sua feminilidade confiantemente exacerbada, algo completamente novo para a época: a ideia de que mulheres poderiam ser poderosas sem deixar de serem femininas. O grupo de heroínas lutava com armas cor-de-rosa e brilhantes, uniformes vibrantes e penteados impecáveis e, diferentemente do que os editores previam, o público amou essas características. Além disso, as protagonistas estavam sempre vestidas com modelitos estilosos, algo implementado como um desejo pessoal de Takeuchi, mas que acabou gerando ainda mais identificação por parte do público japonês, que vivia um boom econômico no cenário pós-Guerra Fria. Quando se tratava de moda, no entanto, quem roubava o show eram as vilãs do mangá.
Uma vez que suas aparições eram menos frequentes, Naoko Takeuchi tinha uma maior liberdade ao vestir suas antagonistas. Para demonstrar seu poder quando comparado ao grupo de protagonistas - que eram, de forma geral, adolescentes de classe alta japonesa, vestidas com as últimas tendências de streetwear - a autora optou por desenhar com modelitos que vinham diretamente de passarelas de marcas de alta-costura. A maior homenageada era a Mugler, marca conhecida por apresentar, com maestria, modelitos avant-garde, ainda que extremamente sofisticados e dramáticos.

À esquerda, a vilã Koan, de Sailor Moon, introduzida no Vol. 4 do mangá, 1993. À direita, vestido da coleção de Haute Couture da Mugler, 1993.
Em 2000, outro mangá criado por uma autora particularmente apaixonada por moda foi lançado, mas as semelhanças entre esse projeto e Sailor Moon paravam por aí. Em 26 de maio, a primeira edição de “NANA”, de Ai Yazawa, foi publicada. A autora, que antes era estudante de moda, sempre utilizou o estilo de seus personagens como uma importante parte de suas personalidades, caracterizações e simbolismo de interesses, e nenhum de seus projetos exemplifica isso tão bem quanto NANA.
O enredo foca em duas jovens adultas extremamente diferentes, mas que compartilham da mesma idade, e são ambas chamadas Nana. As duas se conhecem em uma situação de adversidade e acabam por viver uma complicada e intensa relação. A narrativa, que tem como um dos elementos de sua narrativa a relação entre integrantes de uma banda punk, utiliza da expressão de identidade e do estilo pessoal de seus personagens para muitas vezes demonstrar elementos chave de suas personalidades e como os mesmos colidem entre si.
Em destaque, uma das protagonistas e personagens titulares do mangá, Nana Osaki, é mostrada como uma garota misteriosa, intensa e complexa. No entanto, em uma das cenas iniciais da adaptação para anime (lançada em abril de 2007), a co protagonista resume sua xará em alguns elementos chave: “Vivienne Westwood, os Sex Pistols, cigarros Seven Stars, café com leite, bolo de morango e flores-de-lótus; as coisas favoritas da Nana nunca mudaram”. E, de fato, é possível ver a influência da dama do punk em boa parte dos modelitos usados por Nana Osaki durante os painéis do mangá e das cenas do anime. Os próprios Sex Pistols, banda também citada, eram notórios por utilizarem da marca e, hoje, ambos são indiscutivelmente associados um ao outro.

Nana Osaki (à direita) usa anel de armadura de Vivienne Westwood em sua mão direita.
Enquanto que a recepção doméstica de NANA tenha sido bastante satisfatória, com o mangá tendo sido indicado e até mesmo ganhando alguns prêmios notáveis do segmento durante os anos 2000, foi somente em 2020, vinte anos após o lançamento do mangá, que ele e o anime viram uma grande renascença em sua popularidade, notavelmente por conta do TikTok. Isso porque, ao passo que diversos jovens do mundo todo passaram a abraçar estilos alternativos e a moda da contracultura, os painéis do mangá servem como um grande álbum de inspirações.
Algo não muito diferente aconteceu com Sailor Moon, que durante os anos 2010 foi uma grande inspiração de estilo e estética para jovens usuários de redes sociais como o Tumblr. Mesmo se tratando de histórias completamente diferentes, um dos principais aspectos comuns entre ambos os trabalhos está em sua relação cíclica e simbiótica com a moda: suas autoras, inspiradas pelos trabalhos que viam nas passarelas, os reproduziam em suas respectivas obras. Por consequência, milhares de jovens ao redor de todo mundo, passaram a usar seus mangás favoritos não somente como uma forma de entretenimento, mas como fonte de inspiração para sua própria identidade e expressão pessoal.
Não sabemos qual será o “Sailor Moon” ou “NANA” da próxima década, mas é certo que o ciclo de inspiração proporcionado pela arte é uma das melhores formas de mantê-la viva.
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